Estou me preparando para deitar quando recebo uma mensagem:
E aí Grey, desistiu dos treinos?
Está com medo de mais uns chutes no traseiro?
Sou ainda seu professor?
Bastille
Respondo imediatamente.
Medo? Quer provar? Tem horário para amanhã?
Seu ainda aluno, Grey
Claude Bastille, meu treinador, responde:
Está brincando, só se for à dez.
Venha de fraldas para amortecer os golpes no traseiro.
Bastille
Calmamente escolho uma reposta para digitar enquanto fico pensando...—Sei, lá sou fujão e cagão... Cada uma! Só este Bastille para ter esta coragem.
Combinado. Amanhã, às dez.
Tenha lenços higiênicos preparados para limpar as SUAS fraldas.
Tente dormir depois desta- Grey
Começo a acreditar que realmente o universo conspira a favor. Estava precisando de um bom treino para colocar em ordem as energias. Bastille caiu como um luva.
Deito-me, já é tarde. Fico observando o tempo passar em minha cama. A cidade está silenciosa, mas suas luzes parecem refletir meu cérebro em chamas, povoado de pensamentos contraditórios. Adormeço na madrugada.
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Eu não gosto deste escuro eu não gosto deste cheiro. Lá fora há silêncio.
De repente uma luz inunda os meus olhinhos e uma mão magra, cheia de ossos aparentes me tira do armário do castigo.
—Vem, Chris. Ele já foi. Vem comer alguma coisa.
Ela me dá um pouco de mingau que está quentinho. Ela está cheirosa. Seu cabelo está molhado, tomou banho.
—Depois de comer tudinho você vai tomar um banho também.
Eu gosto quando ela está assim. Só comigo. Eu só com ela. Tem dias que ela é carinhosa comigo.
Eu como todo o mingau. Não sei do que é, mais é gostoso. Olho para o lugar onde estavam os pedaços do meu heli... As peças não estão mais lá e meus olhos se enchem de lágrimas. Era meu único brinquedo. Ela diz:
—Eu recolhi aquelas peças. Ele foi duro com você novamente, não foi?
Eu balanço a cabeça afirmativamente.
—Não provoque mais, não desobedeça. Você tem que ser um menino bom, obediente para não ir para o castigo. Eu disse que ele é perigoso.
Eu derrubo algumas lágrimas em silêncio. Ela passa os dedos por meus olhos, recolhe uma lágrima e beija os dedos molhados. Em seguida, me diz:
—Sabe o que eu acho?
Eu arregalo os olhos para ela e espero as palavras. Sempre aproveito os momentos que ela está assim sendo minha mamãe de verdade.
— Eu acho que você vai ser um homem muito bonito, inteligente e poderoso. Eu acho que você vai ter outro helicóptero, branco como este que você tanto gostava, só que ele vai ser de verdade. Vai voar no céu azul, te levando para lá e para cá.
Eu me imagino um homem bem grandão. Bem fortão. Se eu fosse grandão e fortão eu não ia deixar ela apanhar deste jeito. Eu ia socar a cara daquele filho da puta e colocar ele de castigo no armário fedido. Ia ver ele sufocando lá dentro e pedindo socorro também e não ia nem ligar.
Olho para o céu azul que está lá fora e me imagino voando no meu heli de verdade. Eu gosto de imaginar isso. Sorrio para mamãe e ela sorri para mim. Mas eu noto que o sorriso dela é triste. Seu cabelo marrom está tão bonito esta manhã, mas não combina com o olho roxo e a pele amarelada. A mamãe está muito magra porque não come o mingau como eu. Ela dá só uma colheradinha e deixa o resto no prato. Por isso está fraquinha e tão pálida. Vai acabar ficando doente.
—Pense sempre assim, querido. Você foi o único sobrevivente do seu helicóptero, não foi? Você ficou vivo depois que ele quebrou, não foi?
Eu balanço a cabeça que sim, com a boca cheia de mingau.
— Você quer pentear o meu cabelo? Você gosta de fazer isso, não gosta?
Eu sorrio, pois adoro pentear os cabelos dela.
— Vai comendo, vou buscar a escova de cabelo.
Eu fico lambendo até a última gota do meu mingau. Eu estava com muita fome. Estou feliz porque o dia começou muito bem e eu vou ser um homem poderoso e voador de helis... Esta palavra é difícil, mas eu vou ter um heli poderoso, a mamãe disse.
Fico esperando pela mamãe e acho que ela está demorando muito para achar a escova de cabelo. Vou atrás dela e quando chego ao quarto a encontro caída no chão. Tremendo, revirando os olhos e babando. Será que o mingau fez mal para ela?
Fico desesperado, não sei o que fazer, começo gritar:
— Mamãe... mamãe.. ma...
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